Durante estas semanas de Setembro de 2024, em que a secura extrema e as queimadas proliferantes tornaram de novo o Brasil irrespirável, trabalhei com afinco em 3 projetos culturais que tem A Casa de Vidro como proponente (*) e que foram inscritos na nova fase da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) do Ministério da Cultura (MinC).
E em todo o processo assombrava meu sub-consciente a lembrança de Aldir (1946-2020) e o pensamento indignado de que sua morte, em março de 2020, foi uma sombria insígnia do que ainda estava por vir: a nossa pandemia, desgovernada por um boçal extremista daquela direita mais reacionária, mais violenta, mais lambe-botas de milicos e saudosista da ditadura, despencou sobre nossas cabeças com uma magnitude catastrófica. Aldir foi levado nesta sinistra torrente de estupidez governamental e de terraplanismo sanitário que abriu covas pelo Brasil inteiro.
Devido a esta conjunção tétrica de fatores – a crise sanitária planetária somada a um governo negacionista/obscurantista – tivemos mais de 400.000 mortes evitáveis. Não devemos esquecer que estas pessoas não eram números, mas singularidades encarnadas, e uma destas se chamava Aldir Blanc. Não devemos esquecer também que o principal responsável por esta hecatombe, apesar da CPI da Covid que passou pelo Senado e terminou na ruim e velha pizza de salsicha com catupiry da impunidade, prossegue fora da cadeia.
Logo no princípio da pandemia de covid19, aos 73, um dos maiores letristas da música brasileira, um de nossos artistas graúdos, aquele que era um monumento vivo da cultura em terra brasilis, não pôde mais respirar e foi lançado ao túmulo enquanto o homúnculo Jair Genocida Bolsonaro, sem máscara nem vergonha, vomitava seus “e daí?” diante da “gripezinha”, incentivando o contágio e xingando de mariquinha (ou coisa pior) quem quer que propusesse medidas de contenção da proliferação viral. Em luto, Eliane Brum escreveu no El País naquela ocasião:
“O show de Aldir Blanc não pôde continuar. A esperança já não consegue se equilibrar no Brasil e deslizou para o abismo. O país de Aldir Blanc e todo o seu imaginário foram mortos pelo perverso Jair Bolsonaro que se embriaga com a própria boçalidade, espirra e aperta com dedos lambuzados as mãos de seus seguidores. E então diz, diante das milhares de vítimas da pandemia e de sua irresponsabilidade: “E daí?”. A morte do poeta oficializa que o Brasil continental perdeu seu continente ― sua carne, sua alma e seus contornos ― e a poesia já não nasce.”
Já seu parceiro de longa-data e co-criador de canções imorredouras, João Bosco, manifestou-se naquela ocasião – em que o desgoverno do Bozó fracassou em sequer publicar uma nota de luto – assim:
“Felizmente nossas canções estão aí para nos sobreviver. Perco o maior amigo, mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão pra viver: quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui pra fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio.”
Bem, Aldir Blanc não só saiu da vida para entrar na História – ele virou lei e irriga hoje uma política pública robusta que beneficia artistas e trabalhadores da cultura pelo Brasil afora. Hoje em dia, quando ouvimos que abriram-se editais da Aldir, este é um farol que se acende iluminando caminhos melhores para quem teima em fazer arte em meio aos perrengues. Os recursos públicos que estão fluindo agora pelas veias do Brasil criativo e expressivo, catalisando a continuidade da Cultuva Viva e dos pontos de cultura em teia, tudo isto honra a vida e obra de Aldir Blanc.
Sua morte foi sombria, e se deu num dos momentos mais tenebrosos da História brasileira, mas demos nosso jeito de honrá-lo com uma bela sobrevida. Hoje, milhares de artistas brasileiros mobilizam-se para escrever projetos, compor obras, montar trupes, ensaiar bandas, encenar peças, redigir poemas, sob o resguardo fraternal do ausente-presente Aldir Blanc. Ele que, além de lei, também virou estátua no seu Rio de Janeiro natal, e segue tendo suas tocantes palavras sendo tocadas em nossos fones-de-ouvido e alto-falantes. E a esperança equilibrista, na corda-bamba, de sombrinha, continua fazendo estripulias mil na noite do Brasil…
Em seu excelente livro Dysphoria Mundi – O Som do Mundo Desmoronando (Zahar, 2024), Paul Beatriz Preciado produziu uma bela reflexão sobre aqueles “dias de doença e confinamento”, em que o futuro parecia ter sido cancelado, em que “muites de nós compreendemos que”:
“Não precisamos de nada do que o capitalismo produz para viver e ser felizes. Oxigênio, capacidade de respirar, ausência de dor, alguma comida e amor. O que as restrições e o isolamento evidenciam é que a chave do bem viver não reside no consumo de objetos, mas, ao contrário, única e exclusivamente no cultivo das relações, não apenas inter-humanas, mas também cósmicas, aquelas que um organismo estabelece com seu meio ambiente como entidade viva.
Se precisamos de “cultura” é porque as produções culturais, os livros, as obras de arte, as peças de teatro e de dança, os filmes não são objetos de consumo. São relações sociais encapsuladas em códigos linguísticos, teatrais ou audiovisuais. Por isso, durante este tempo de reclusão, nos alimentamos com a energia nelas contida. Entramos em relação com as obras de arte como faríamos com outros seres vivos, animais, vegetais ou humanos. Ou com o sol. O consumo de objetos é quase totalmente dispensável, além do consumo energético necessário para a manutenção da vida. Mesmo na gastronomia, a mesa que permite que os que se amam se reúnam para partilhar a comida é mais importante que a própria comida. Vivemos de energia relacional. Devemos opor-nos ao capitalismo, ao patriarcado e à colonialidade como formas de produção, de consumo e de destruição da vida. Se não formos capazes de aprender esta lição com tudo que está acontecendo, não sobreviveremos.” (PRECIADO: p. 235-236)
(*) Após ter sido contemplada com recursos federais da Aldir Blanc emergencial durante a pandemia, o que permitiu com que nosso ponto de cultura não fechasse e catalisou a produção de Hoje A Aula É Na Rua (filme longa-metragem) e Fritos da Terra (Coletânea Audiovisual de Música Autoral), em 2024 A Casa de Vidro propôs os seguintes projetos: gravação da EP de estréia da banda Fritos da Terra; consolidação do Cineclube + Cinedebate d’A Casa de Vidro para realização durante todo o ano de 2025; e publicação do livro Kinobrasa: Reflexões críticas sobre o cinema brasileiro contemporâneo, de Eduardo Carli, em uma parceria com a editora Goiânia Clandestina.
Caso aprovados, estes projetos vão beneficiar dezenas de agentes culturais e profissionais do setor artístico-cultural, ajudnado a dar novo fôlego para que possamos seguir inventando um país melhor em meio às ruínas. Caro Aldir, tua morte foi sombria, mas tua sobrevida é um farol de alegria: a PNAB e a refundação do MinC, no mandato Lula 3, dão hoje a sensação de serem, em meio à atmosfera irrespirável que insiste em criar nosso insistente agrofascismo e nosso grudento extremismo bolsonarento, uma autêntica volta do futuro. Há mar aberto. Criemos!
Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 20/09/2024
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Publicado em: 20/09/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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